A identidade do nosso pai da fé é transformada – de Abrão para Abraão – quando “prostrou-se com o rosto por terra”, diz a primeira leitura (Gn 17,3-9). É tremenda essa expressão! Quanto mais próxima a terra, mais elevada é a vida de Abraão! É o caminho contrário do orgulho, da vaidade, da presunção de grandeza e a descoberta que o verdadeiro sentido de tudo está em “prostrar-se”, em “lançar-se na terra”, em perder! De fato, é na cena da condenação que Jesus revelou: eu sou rei! O rei que perdeu tudo para ganhar tudo!
O gesto de Abraão ganha mais conteúdo com a expressão de Jesus, no evangelho: “se alguém guardar a minha Palavra jamais verá a morte” (Jo 8,51-59). Estamos no meio de um conflito dos judeus com Jesus. Os judeus questionavam as atitudes de Jesus e preferiram a distância. Jesus evidenciou que a identidade de Abraão foi um itinerário de ampliação da vida, de saída de si, de encontro “com a terra”. Fechar-se a Jesus significava distanciar-se de Abraão, de quem eles se diziam filhos.
“Prostrar-se por terra” faz meditar a identidade que se configura a partir de tudo que passa pela nossa vida! É a proximidade com o real, com a vocação humana primordial – feito de terra! O futuro depende da nossa capacidade de – com o rosto por terra – encontrar o mapa das estrelas.
Fernando Pessoa, neste dia mundial da poesia, ajuda compor a nossa oração:
Se eu pudesse trincar a terra toda
E sentir-lhe um paladar,
Seria mais feliz um momento…
Mas eu nem sempre quero ser feliz.
É preciso ser de vez em quando infeliz
Para se poder ser natural…
Nem tudo é dias de sol,
E a chuva, quando falta muito, pede-se.
Por isso tomo a infelicidade com a felicidade
Naturalmente, como quem não estranha
Que haja montanhas e planícies
E que haja rochedos e erva…
O que é preciso é ser-se natural e calmo
Na felicidade ou na infelicidade,
Sentir como quem olha,
Pensar como quem anda,
E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,
E que o poente é belo e é bela a noite que fica…
Assim é e assim seja…