Mia Couto escreveu que «ser criança é estar cheio de céu por cima». Em 2014, durante uma premiação, o escritor narrou o encontro com uma criança de 9 anos: «o menino ali estava, à entrada do salão, com um exemplar do meu livro debaixo do braço. O pai pediu-me que assinasse o livrinho antes da sessão de lançamento porque o menino, o Manuel, tinha que se deitar cedo. Ajoelhei-me junto ao Manuel e fiz umas tantas perguntas idiotas que os adultos normalmente fazem quando acreditam que estão a falar com crianças. O menino olhou-me desinteressado e quase desapontado: eu era igual a todos os outros, os que, vezes sem conta, já lhe haviam feito as mesmas perguntas. Coloquei-lhe então uma outra questão:
– Este livro é sobre o medo do escuro. Será que tu tens medo?
Pela primeira vez ele me olhou nos olhos. Demorou a reagir e respondeu com uma pergunta:
– E tu tens medo do escuro? Disse-lhe que sim. Ele gostou da sinceridade, deu meia volta e quando já se afastava conduzido pela mão do pai, ele parou e disse-me à distância:
– Não tenhas medo. O escuro apenas é feito das coisas que nele colocamos.
Disse aquilo para me reconfortar. Mas ele apenas recitava uma frase que eu tinha escrito no livro. O fato de um menino ter citado uma frase minha como se fosse algo da sua autoria foi talvez o maior dos prémios literários que tive. Nunca mais esquecerei esse momento!».
Conta o evangelho de hoje (Mt 18,1-5.10.12-14) que os discípulos se aproximaram e perguntaram a Jesus: «que é o maior no Reino do Céu?» Ao que Jesus chamou uma criança, colocou-a no meio deles e disse: «sejam como essa criança!» Jesus estava estabelecendo o primado da pequenez! Era um gesto ilógico e irracional, tal qual o de deixar 99 ovelhas e ir procurar 1 que tinha se perdido.
O que de «criança» ainda mora em nós?