Se os cachorros adquiriram o estatuto de «melhor amigo», tornando-se, em muitos casos, um alargamento das famílias e uma companhia para tantas solidões, na história, nem sempre foi assim. Para o mundo antigo, desde os cultos idolátricos primitivos, o cachorro era um animal impuro e colocado ao lado das histórias de prostituição. Esse simbolismo também atravessou a Bíblia. No Novo Testamento, por exemplo, quando Jesus contou a parábola do pobre Lázaro e do homem rico, o cachorro «lambia as feridas de Lázaro», ou seja, estava ao lado do contaminado.
O evangelho recorda a figura do cachorro ligado aos pagãos, considerados impuros pelos judeus (Mt 15,21-28). Jesus mesmo utilizou a expressão! Porém, a imagem do animal é atravessada pela fé de uma mulher siro-fenícia, pagã, que procurava em Jesus a cura da sua filha.
De fato, em resposta ao seu pedido de ajuda, Jesus respondeu: «não fica bem tirar o pão dos filhos e dá-lo aos cachorrinhos». Nessa altura, para Jesus, a sua missão era unicamente voltada ao povo judeu. A resposta da mulher o surpreendeu muito: «os cachorrinhos também comem as migalhas que caem da mesa dos seus donos». A expressão seguinte confirmou o seu espanto: «mulher, grande é a tua fé! Seja feito como tu queres».
A mulher siro-fenícia facilitou uma nova compreensão da missão de Jesus: não como exclusividade de um povo, mas aberta para todos os povos, sempre em expansão, na contramão das fronteiras. Caem por terra as divisões entre puros e impuros, entre os ditos ‘cachorrinhos’ ou não, porque a salvação, que começou por Israel, é destinada ao mundo inteiro. São Paulo, na carta aos Gálatas (3,28), sintetizou: «não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher, porque todos sois um em Cristo».
Temos muito de aprender dessa mulher: uma fé que procura, que busca, sempre em movimento; uma fé que é atravessada por diálogo e argumentos, não uma fé imatura e mágica. Verdadeiramente, trata-se de uma mulher teóloga, mística, pedagoga e educadora da fé que provoca a nossa fé razoável!